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quinta-feira, 13 de novembro de 2008

AVE QUE SE TORNOU FAMOSA NO BIG BROTHER BRASIL 2 APARECE NA FONTE LUMINOSA CONDE SILVIO ALVARES PENTEADO, NA PRAÇA BARÃO DE ARARAS



Desde já, afirmo que não sou fã de reality shows - aliás, detesto -, e se neste ensaio faço alusaõ ao Big Brother Brasil da Rede Globo, é apenasmente para comentar a ave em questão.

No começo da década de 1990, eu tinha num jornal local uma coluna que versava sobre as aves que vivem na zona urbana de Araras. De todas as aves que identifiquei neste meu levantamento, uma das que não fizeram parte da lista foi a ave conhecida como lavadeira-mascarada (Fluvicola nengeta), espécie de porte médio, da mesma família do bem-te-vi comum, que ainda não ocorria na zona urbana e mesmo no Lago Municipal. Calculo que deva haver cerca de 300 espécies ou mais de aves na zona central da cidade. Só para se ter uma idéia, nas “selvas de concreto” da cidade de São Paulo há 273 espécies identificadas!


Em junho de 2003, passando pela praça Barão, sempre observando as aves que ali existem, vi pela primeira vez, na borda da fonte luminosa Conde Silvio Álvares Penteado, uma lavadeira caçando insetos, isto sem nenhuma preocupação com as pessoas que passavam. Neste mesmo mês, reencontrei outra lavadeira, ou a mesma, já formando um casal, com um ninho edificado no alto de um pequeno pinheiro no jardim em frente a fonte, de onde veio à luz um único filhote. Um ninho semelhante no mesmo pinheiro, um pouco abaixo do citado, foi encontrado, talvez um indicio de que o ano passado ela já nidificara ali.


Mas que motivos levaram uma ave que normalmente vive em ambientes aquáticos a passar a freqüentar a zona urbana? A lavadeira-mascarada, pelo que se conclui, está entre as espécies de pássaros que tem tendência à sinantropia, ou seja, é uma ave que conseguem se adaptar sem grandes dificuldades ao ambiente alterado das cidades. Etimologicamente falando, sinantropia significa amigo do homem. A "relativa" semelhança da fonte luminosa com o habitat natural da ave, mais os fatores disponibilidade de alimento e arborização favorável, tornaram possível sua adaptação à esse “arremedo” de seu ambiente natural, mas ocorre que ela está freqüentado praças e outros locais onde não há água disponível como em seu habitat natural. . A ocorrência de determinadas aves paludícolas e de ambientes abertos na zona urbana, tem sido associada à “desertificação antrópica”, isto é, a destruição do seu habitat natural pelo homem. A tendência moderna de se promover a arborização de jardins e vias públicas com espécies de importância biológica, bem como imitar habitat selvagens é um fator relevante que facilita sobremaneira o adensamento populacional e fixação de algumas espécies de nossa fauna nos ambientes urbanos.



A distribuição desta ave é curiosa, pois existem duas populações muito distantes: é tida como originalmente ocorrente no nordeste do Brasil (forma nominal), bem como oeste do Equador e noroeste do Peru (F. n. atripennis). A população brasileira, antigamente restrita a açudes e rios no sertão e agreste da região nordeste, vem se expandindo. A Mata Atlântica, que aparentemente representava uma barreira natural para esta espécie, foi perdendo espaço para pastagens e culturas que se assemelham mais ao semi-árido do que à Floresta Umbrófila, possibilitando assim a expansão desta espécie. Outras explicações envolvem o aumento no número de rios represados no sudeste e mudanças climáticas. O fato é que esta simpática ave está sendo registrada cada dia mais ao sul. Na década de 1990 foram feitos os primeiros registros da espécie no interior de São Paulo, e atualmente já são registradas aves se reproduzindo em Santa Catarina. No Rio de Janeiro a lavadeira-mascarada começou a aparecer na zona urbana por volta de 1959 e no Estado de São Paulo em 1980. Mas o que venho comentar nesta matéria, não é sobre esse seu avanço para o Sul do país, e sim a sua ocorrência em zonas urbanas. Segundo o professor Francisco Manoel de Souza Braga da Unesp/Rio Claro, o ornitólogo norte-americano Edwin Willis, professor da mesma universidade (que tem estudos sobre expansão geográfica de aves de zonas abertas com a “desertificação” antrópica em São Paulo), comentou e registrou a ocorrência dessa espécie no lago do Horto Florestal de Rio Claro (SP) e áreas de entorno em 1991. Agora, 13 anos após Rio Claro, chegou a vez de Araras ser contemplada com a presença da lavadeira, mas com notável ocorrência e distribuição por toda a zona urbana da cidade.



O autor observou, em setembro de 2008 (Araras, SP), uma casal com um ninho num pé de mamão entrelaçado com uma roseira, instalado a cerca de 2 metros de altura, numa rua urbana em frente à uma praça bem arborizada, mas esta rua distava cerca de 300 metros de um curso d’água. Acima, foto do ninho, e, ao lado, um filhote no mesmo local, em janeiro de 2007. No entanto, cita-se que a ausência de corpos d'água próximos aos ninhos não é um fator determinate para a nidificação da espécie.



Mas, o que me levou também a escrever esta reportagem? Ocorre que um exemplar desta ave se tornou popular entre os brasileiros em 2002 após ganhar notoriedade no programa Big Brother Brasil 2. Uma das participantes deste reality show, a comissária de bordo Cida (foto ao final do texto), tornou a lavadeira-mascarada famosa ao se “relacionar” com ela, nas vezes em que a ave costumava aparecer para caçar insetos na piscina da mansão. Cida – uma versão feminina de Santo Francisco de Assis, o santo que conversava com as aves – dizia se comunicar mentalmente com a ave e, através dos “conselhos” dela decidia quem iria ou não para o paredão... Toda vez que Cida trocava confidências com a ave, outra participante, a jogadora Tina, surtava. Soa estranho o nome com que ela batizou a ave, “são jorge”, uma vez que a lavadeira também é conhecida por lavandeira-de-nossa-senhora no Norte e no Nordeste (Cida é carioca), mas será que o nome de santo se deva ao time Corinthians, que tem em seu uniforme as mesmas cores da lavadeira, preto e branco, time cujo padroeiro é São Jorge?

Brincadeiras à parte, a lavadeira-mascarada é ave protegida, inclusive por caçadores de pássaros, pois lhe é atribuída a lavagem das roupas de Nossa Senhora, daí este seu outro batismo; assim, quem a mata ofende Nossa Senhora. Reza o folclore que “Quem mata lavadeira tem cinco anos de atraso”... Olegário Mariano recolheu estas quadrinhas:


“Lavandeira, lavandeirinha,

Nos dias quentes de calor,

Lava nas águas do riacho

A roupa de Nosso Senhor

Lavandeirinha de asa preta,

Contigo eu vou lavar também

O vestido de chita pobre

Daquela a que eu quero bem.”


O folclorista Getúlio César recolheu no município de Leopoldina, Alagoas, junto de Sertãozinho, Pernambuco, a seguinte “incelença”:


“Uma lavandeira,

Um beja-fulô,

Lavava os paninhos

De Nosso Sinhô,

Quanto mais lavava Mais sangue corria,

Nossa Sinhora chorava

E o judeu sorria.”


O seu seguimento é “Uma lavandeira, dois beja-fulô...”, e assim vai até “Uma lavandeira doze beja-fulô.”


Eu seu excepcional livro, Canto de Muro, Câmara Cascudo trouxe um belíssimo texto, onde fala das intimidades da Lavadeira, da sua amizade com o bem-te-vi, além de revelar profundas minudências sobre essa curiosa ave. Vale a pena transcrevê-lo.


“Uma parenta amiga íntima do Bem-te-vi é a Lavadeira, Lavandeira como gostosamente o povo diz. Trata-se, gravemente, de um Tiranídeo, Fluvicola climasura, Vieill. Peque­nina, asas negras, as listas heráldicas da família prolongando-lhe os olhos, é a mobilidade, a volubilidade, a graça leve, fina, alada, graciosa sempre, familiar e doméstica, enchendo de agitação, de elegância natural, o silencio do canto do muro nas horas do dia.

Faz um ninho baixo, empregando materiais disparatados mas num arranjo pobre e simples que resulta emocional. Caça com uma técnica de minueto, correndo como se fosse atender a uma volta de pavana ao som dos violinos de Lully. Está por perto do tanque, banhando-se muitas vezes, um banho tão sumário, rápido e fidalgo que dá vontade perguntar a exata finalidade do ato, vaidade de exibição ou exigência de higiene em ritmo de segundos musicais.

Sempre perto do Bem-te-vi corre, volteia, sobe e desce a Lavadeira habitual. Como deglute insetos microscópicos e os faz num súbito arranco em linha reta, tem-se a impressão que está caçando raios de sol porque neles encontra, como em suspensão, a vida dos mínimos de que se alimenta. Exceto nas horas ardentes de verão quando faz a sesta como uma doce sinhá moça tropical na varanda da casa-grande, trabalha dia inteiro. Mas sua tarefa é um bailado com todos os jogos de elevação, piruetas e batidas que arrastam aplausos das samambaias e dos tinhorões hierárquicos. Não é possível que a Agilidade possua outra imagem e a Sedução melhor modelo.

Burla as exigências do equilíbrio e as leis da gravidade nos vôos espiralados, freados com as. asas abertas nas descidas imprevistas, as perpendiculares e os círculos descritos no ar como se não tivesse peso e apenas o atravessasse como uma luz e um perfume.

Nos jorros luminosos que descem através da folhagem a Lavadeira baila como se o rei Herodes Ãntipas a assistisse. Exigirá apenas alguns insetos que a luminosidade revelou aos seus dois olhos negros.

Em 1728, Nuno Marques Pereira já elogiava sua glória de bailarina:


Saiu de ponto a dançar

A Lavadeira, e mostrou

Era tão destra na dança

Que pés na terra não pôs.


Tem seu repertório melódico. Três ou quatro números de efeito. Gosto muito de um deles em que ela canta com as asas abertas, erguendo-se na cadência do garganteado incessante e oscilando o corpinho como se orasse numa mesquita oriental. É um duelo. Outra lavadeira está por diante, acompanhando a virtuosidade da execução, contracantando e repetindo o compasso da idêntica movimentação envolvedora.

É neste canto que a sua cauda negra e graciosa plagia a técnica das lavadeiras nos rios. Dai o nome que lhe deram os franceses e nós recebemos. A tradição afirma que ela lavou a roupa do Menino Deus.

Em certa distância o primo Bem-te-vi aprecia o quadro. Agora que o crepúsculo pinta de ouro e sangue a tarde vagarosa, as duas lavadeiras cantam, alternadas e uníssonas, numa claridade votiva, a despedida do dia e de suas tarefas que amanhã voltarão.

Do canto do muro, no alto, a cabeça triangular emergindo dos cachos ornamentais, Vênia muito naturalmente concordava com os aplauso...”

Em outro texto seu, Aves e pássaros no folclore brasileiro, publicado na Revista do Livro, nº19, Câmara Cascudo, se referindo à uma outra espécie de lavadeira, a Arundinicola leucocephala , mais conhecida como freirinha, escreveu o seguinte:

“Surpresa é dizer-se que a lavandeira, Arundinicola leucocephala, a tiranida vista em toda a parte, está no Index. Apesar de seus hábitos simples, de sua familiaridade, de suas visitas às calçada e cozinhas, de seus saltos e reviravoltas, a lavandeira não é boa peça. Se lavou a roupa de Nosso Senhor foi gesto único de bondade. Dá azar. Para anular seu inconsciente prestígio maléfico quando lhe derem de comer, especialmente se fiapos de carne-verde, não lhe dêem de beber. E vice-versa.”


Enfim, se a nossa lavadeira da fonte luminosa vai se tornar conselheira e atender as súplicas de alguém (os corintianos, por exemplo...) eu não posso garantir, mas convido o povo ararense a ir conhecer pessoalmente essa bela, pacífica e atrativa ave lá na praça Barão e conferir como a manutenção adequada de uma área verde dotada de ambientes aquáticos pode colaborar na atração e fixação de novas espécies de pássaros e outros animais no meio urbano, ainda que a nossa praça Barão esteja meio longe disso...




BIBLIOGRAFIA:

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